sexta-feira, 19 de julho de 2013

Todos os ovos num cesto cheio de buracos

Não preciso de acrescentar nada ao que abaixo é dito. Vítor Gaspar, antes de bater com a porta, quis deixar mais uma marca da soberba e da insensibilidade com que olha a vida dos portugueses.
Correr riscos destes não é legítimo e deveria ser vedado a qualquer governante.
Por isso, pergunto se não teremos de começar a julgar estes senhores, nos tribunais, pelas consequências da má gestão da res publica (=coisa pública, coisa do povo). É que perder as eleições a seguir… NÃO BASTA!
 
 
O assalto aos fundos da Segurança Social
 
comunicado de imprensa de Vítor Lima e Rui Viana Pereira[1]
 
O último acto oficial do ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar foi uma portaria assinada em parceria com o ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Mota Soares.[2] Este diploma obriga o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) a comprar dívida pública portuguesa até ao limite de 90% da sua capacidade de investimento financeiro. Para cumprir este objectivo, o FEFSS terá de vender os seus activos em carteira – ou seja, abrir mão de um conjunto diversificado de investimentos seguros, onde se incluem acções de empresas e títulos de dívida de outros países da OCDE.[3]
Em primeiro lugar há que notar um erro de palmatória em matéria de investimentos: o FEFSS é obrigado a pôr todos os ovos no cesto da dívida pública. Ao primeiro trambolhão que o cesto sofra, perdem-se duma assentada décadas de quotizações dos trabalhadores – ou seja, as suas reformas.
Além disso monta-se uma curiosa pescadinha de rabo na boca: os trabalhadores por conta de outrem são obrigados a comprar com as suas poupanças (as quotizações para a Segurança Social) títulos da dívida pública que os sufoca. E depois, através dos impostos, eles próprios vão pagar os respectivos juros que deviam receber! Em suma: os trabalhadores ficam obrigados por lei a comprar a corda que vai enforcá-los.
 
O que é a Segurança Social
 
A Segurança Social nada tem a ver com a máquina do Estado; é um instrumento autónomo dos trabalhadores. É um fundo colectivo para a garantia de rendimentos de substituição em casos de aposentação, doença ou desemprego. O dinheiro arrecadado não pode ser utilizado para benefício de outras entidades, incluindo o governo.
Até à data, a Segurança Social sempre foi superavitária.[4] O resultado dos sucessivos saldos positivos criou um fundo entre 8 mil milhões e 11,5 mil milhões de euros[5], financeiramente geridos pelo Instituto de Gestão de Fundos de Capitalização da Segurança Social (IGFCSS).vi Não é difícil adivinhar que um tal volume de capitais suscita o apetite, a cobiça e os mais baixos instintos de todos os especuladores financeiros, que vêem aí um potencial maná livre riscos e de juros.
Entretanto, a dívida bruta à Segurança Social passou de € 8503 M em 2011 para € 9778 M no ano passado, sendo a sua esmagadora maioria da responsabilidade de empresas.
 
Os fundos da Segurança Social são distintos do erário público
 
Os dinheiros da Segurança Social são autónomos; provêm da quotização dos trabalhadores. A sua natureza e a sua origem são distintas dos impostos.
Há no entanto quem confunda impostos e quotizações. Quanto maior for a confusão e a promiscuidade entre impostos e quotizações, entre Estado e Segurança Social, mais fácil será desviar os recursos colectivos autónomos para mãos privadas.
Daqui se conclui que tem de ser reposta na ordem do dia a necessidade de autonomizar a gestão da Segurança Social, sob controle dos trabalhadores.
 
Um golpe palaciano
 
Ao obrigar o FEFSS, por simples portaria (que apenas depende da assinatura de um ministro), a comprar doses maciças de títulos da dívida pública portuguesa, o Governo executa um autêntico golpe palaciano: a autonomia da Segurança Social fica definitivamente ferida e subordinada aos objectivos do Governo. Estamos em presença de uma redefinição da Segurança Social que apenas poderia ser feita por uma assembleia nacional constituinte e desde que aceite pelas organizações directamente representativas dos trabalhadores.
Há que reconhecer algum génio nesta portaria de Vítor Gaspar: depois de aplicados 90% dos fundos disponíveis da Segurança Social na compra de títulos da dívida portuguesa, anular ou renegociar a parte ilegítima da dívida equivalerá a dar o golpe de misericórdia na Segurança Social, pois uma parte considerável dos rendimentos dos trabalhadores já terá sido transferida para os buracos orçamentais do Governo.
Por fim, esta manobra deixa adivinhar a proximidade duma fase de desastre da dívida pública: nem o último dos inocentes acreditaria que a banca nacional e internacional e os especuladores financeiros deixassem escapar para o FEFSS um negócio no valor de milhares de milhões de euros, se ele fosse prometedoramente rentável.
 
Lisboa, 9-07-2013
 


[1] Os autores:
Vítor Lima: economista; autor de numerosos estudos sobre economia, finanças e segurança social publicados em http://grazia-tanta.blogspot.pt/.
Rui Viana Pereira: revisor e tradutor; co-autor de Quem Paga o Estado Social em Portugal? e de «E Se Houvesse Pleno Emprego?», in A Segurança Social É Sustentável (Bertrand, Lisboa, 2012 e 2013 respectivamente); co-fundador do CADPP.
Ambos são membros activos do grupo cívico Democracia & Dívida.
[2] Portaria n.º 216-A/2013, de 2 de Julho.
[3] «Actualmente, 55% da carteira do FEFSS está investida em dívida pública portuguesa e 25% em dívida pública de outros Estados da OCDE. Existe ainda uma parcela de 17% investida em acções de empresas estrangeiras.» (ibidem)
[4] Ver, entre outros: António Bagão Félix, Jornal de Negócios, 9-07-2013; Vítor Lima, A dívida à Segurança Social - o longo conluio entre empresários manhosos e o Estado (2013); Renato Guedes e Rui Viana Pereira, Quem Paga O Estado Social em Portugal? (2012).
[5] Consoante as flutuações de mercado, em particular da dívida portuguesa.
vi O FEFSS é gerido pelo Instituto de Gestão de Fundos de Capitalização da Segurança Social (IGFCSS), um órgão que pretende garantir a «manutenção da sustentabilidade do actual sistema de segurança social», através da aplicação financeira de «uma parcela entre 2 e 4 pontos percentuais do valor correspondente às quotizações dos trabalhadores por conta de outrem, além dos saldos anuais do subsistema previdencial, receitas resultantes da alienação de património e os ganhos obtidos nas aplicações financeiras» (Portaria 1273/2004 http://www4.seg-social.pt/documents/10152/21719/Port_1273_2004).
 



A este comunicado enviado à imprensa os autores aproveitam a publicação neste site para acrescentarem o seguinte:
 
Os eixos centrais da acção na fase actual
 
O assalto à Segurança Social tornou-se, em Portugal, um dos epicentros da política neoliberal, a par de outros dois: o desemprego e a precarização sistemática das relações de trabalho.
Ao dizermos «epicentro», referimo-nos àquilo que mais imediatamente é visível e sentido pela maioria da população – e que por isso mesmo mais facilmente (e com maior proveito imediato) pode ser mobilizador. É nestes três epicentros que se devem apostar os cartuchos – e não em manobras políticas institucionais às quais uma grande parte da população portuguesa, já demasiado escaldada, tenderá naturalmente a encolher os ombros e virar costas.
A Segurança Social é uma das conquistas mais notáveis e necessárias à sobrevivência dos trabalhadores. Não atender a este epicentro da luta das populações, não o colocar no eixo das propostas de acção política, organizativa e mobilizadora, corresponde a uma traição com efeitos devastadores, incluindo perda de vidas.
 


 

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